Por Túlio Velho Barreto e Jorge Ventura de Morais
Não esperemos o fim da Copa do Mundo, disputada atualmente e pela primeira vez na África, para antecipar sua maior herança: o debate sobre o uso de tecnologia de monitoramento no futebol, ou seja, o uso de tecnologia para tirar dúvidas em lances capitais em uma partida.
De fato, se nada mais grave ocorrer, para tanto, já são suficientes lances de Brasil-Costa do Marfim, Alemanha-Inglaterra e Argentina-México. Isso para ficarmos apenas nos principais erros de arbitragem até aqui.
Vamos lembrá-los: o uso irregular dos braços por Luís Fabiano antes do segundo gol do Brasil; o gol não anotado do inglês Lampard, quando a bola ultrapassou a linha fatal; e o gol do argentino Tevez em posição de impedimento. Há consenso: foram erros crassos e paradigmáticos, que exemplificam tantos outros.
Então, de forma inédita, vimos um árbitro reconhecer a irregularidade do lance para seu autor; um assistente considerar a hipótese de ter errado após consultar o telão; e a Fifa, através do presidente, admitir os erros e pedir desculpas aos prejudicados. E, assim, admitir o debate sobre o tema que mais incomoda a entidade e a International Board (IB).
Erros em Copas, bem como em toda competição futebolística, não são novidades.
O próprio lance envolvendo Lampard nos remete à decisão de 1966, disputada na Inglaterra e vencida pelos anfitriões frente à mesma Alemanha, com gol validado sem que a bola tenha entrado.
Já o argentino Maradona usou “la mano de Diós” para eliminar a Inglaterra, em 1986, no México.
Agora, a França chegou à Copa após Thierry Henry usar a mão duas vezes e propiciar o tiro certeiro de Gallas contra a Irlanda.
Os debates acerca do uso de tecnologia de monitoramento no futebol são relativamente recentes, pois os recursos para tanto, do ponto de vista histórico, também o são.
Mas, por ser um evento mundial, as Copas introduzem inúmeras novidades tecnológicas, sobretudo na forma como as partidas são acompanhadas.
Nada passa mais despercebido.
Na África, por exemplo, todas as partidas são registradas por 32 câmaras e lances são repetidos em velocidade ainda mais lenta.
E é possível medir distâncias, identificar posições e trajetórias etc.
A própria Fifa “vende” esta, como “a Copa da imagem”.
Mas o uso de tecnologia não é novidade no futebol.
A tecnologia e seu desenvolvimento estão presentes não só em transmissões das partidas e telões nos estádios mas também nas roupas e chuteiras dos jogadores e árbitros; na preparação física deles; na Jabulani, a tão polêmica bola da Copa; na mistura de gramas naturais e artificiais, que visa sua maior qualidade e durabilidade…
E são comuns em outros esportes.
Daí, considerarmos necessário especificar de que se trata de debate sobre a introdução de tecnologia de monitoramento em lances capitais e factuais (se a bola entrou; se o gol foi marcado por jogador em posição irregular…), e não indiscriminadamente ou quando caiba interpretação (se foi mão na bola ou bola na mão; s e o jogador estava em posição de impedimento passivo ou não…), sob pena da IB e a Fifa não fazê-lo avançar.
Em 2008, concluímos, no Núcleo de Sociologia do Futebol (Nesf), a pesquisa Análise Sociológica das Mudanças das Regras do Futebol, com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Dela resultou nosso artigo “As regras do futebol e o uso de tecnologia de monitoramento”, apresentado no encontro da Associación Latinoamericana de Estudios Socioculturales del Deporte (Alesde) e publicado em Estudos de Sociologia, revista da pós-graduação em Sociologia da UFPE, no mesmo ano. Uma versão reduzida dele está em www.alesde.ufpr.br/encontro/trabalhos/21.pdf.
Mapeamos o debate sobre o tema no Brasil a partir da posição dos agentes envolvidos, direta (jogadores, treinadores e árbitros) ou indiretamente (jornalistas esportivos). Entrevistamos membros de clubes da Série A e diversos jornalistas do país.
E identificamos, então, três posições: a primeira, amplamente favorável ao uso de tais recursos, baseada em argumentos racionais e de justiça; a segunda, também favorável, mas apenas em lances capitais e factuais já consumados (foi ou não foi gol); e uma terceira, contrária, baseada na emoção, imprecisão e imperfeição do futebol em clara analogia com o cotidiano.
Agora, devemos aprofundar o debate a partir do pressuposto de que erros de arbitragem tornaram-se (apenas) mais visíveis em função da tecnologia disponível e usada para a transmissão de uma partida.
Em se tratando das Copas, quando tais recursos são amplamente empregados, o que se espera é que a memória registre e a história eternize os gols, os dribles, os craques, a beleza do jogo, enfim, e não tais erros, sobretudo porque são passíveis de imediata revisão. Caso contrário, diante da alta tecnologia disponível para se acompanhar uma partida (até em celulares), logo estará em xeque a própria credibilidade do jogo.
Túlio Velho Barreto (Fundaj) e Jorge Ventura de Morais (UFPE) são pesquisadores e coordenam o Núcleo de Sociologia do Futebol (UFPE/Fundaj)