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quinta-feira, 20 de agosto de 2009
Um imbróglio mui democrático...
Não posso furtar-me a meter minha caneta digital neste imbróglio entre as duas maiores ‘redes’ de TV aberta do país, que alguns parlamentares e figuras da mídia, com a desfaçatez que lhes é peculiar, julgam ser uma ótima demonstração da “liberdade de expressão” que existe hoje em Bruzundanga (assim declarou Nelson Hoineff, presidente do Instituto de Estudos de Televisão). Os menos cínicos lamentam o episódio e se consternam com a situação do público, decerto a maior vítima da suposta ‘guerra santa’: “Triste é o país que deve escolher entre a liderança da Globo e as ameaças da Record”, sentenciou Antonio Brasil, diretor do IET. É óbvio que a ética é um conceito ausente nesta querela midiática, mas, ironicamente, graças ao fogo cruzado das duas emissoras, acendem-se as lamparinas do juízo e boa parte do público poderá tomar ciência do que existe por trás das telas platinadas.
A roupa sujíssima que o roto e o esfarrapado estão lavando na rua não é nenhuma novidade. Há mais de duas décadas o gaúcho Daniel Herz já nos contava com detalhes, no livro A história secreta da Rede Globo, as origens mais que nebulosas da empresa do clã Marinho. A longa série de escândalos se inicia com um ‘empréstimo’ de US$ 6.090.730,53 que o grupo estadunidense Time-Life efetua à emissora entre 1962 e 1966, violando o artigo 160 da Constituição vigente, que vedava a participação de capital estrangeiro na mídia. O próprio Banco Central, ainda no governo de Jango, desautorizou os contratos firmados entre Globo e Time-Life, que seriam investigados por uma CPI do Congresso em 1966. A ditadura militar de 64, porém, abafou o caso, já que a Globo lhe caíra como luva no projeto de expansão das telecomunicações no país.
A partir daí, a história da Vênus platinada é mais do que conhecida: ela se vale da extensa rede de microondas que a EMBRATEL estende sobre o nosso território para estabelecer o novo conceito de transmissão em rede (network), cobrindo quase 98% do país-continente. Satisfaz, assim, uma exigência básica dos oligopólios que dominam a economia, ao promover a integração nacional, singular eufemismo sob o qual se disfarça a expansão do mercado na fase corporativo-monopolista da evolução capitalista tupiniquim. E eleva á máxima potência seus próprios lucros, já que a maior audiência diminui os custos dos anunciantes (em 1983, um anúncio divulgado para mil espectadores pela Globo custava Cr$ 134,70 – nas redes B e C, de menor penetração, as cifras eram Cr$ 467,00 e Cr$ 256,00).
Por fim, a afilhada da ditadura, que hoje se diz um esteio da ‘democracia’, contou também com um rol privilegiado de padrinhos para amortecer o escândalo com a Time-Life, viabilizar sua ‘legalização’ e consolidar a liderança comercial: o marechal Castelo Branco (1964-67) e seus ministros Otávio Bulhões e Roberto Campos; o marechal Costa e Silva (1967-69), sucessor de Castelo; o general Orlando Geisel (1974-79) e o ministro Euclides de Oliveira; o general Figueiredo, chefe do SNI e sucessor de Geisel. Isso sem falar no cérebro do regime, general Golbery, e do eterno Ministro das Comunicações, ACM, sinistro coronel que fez da concessão de canais aos clãs aliados um dos negócios mais prósperos do regime.
Os tempos, é claro, mudaram (para pior, não resta dúvida) e a emersão da era neoliberal trouxe consigo o fenômeno midiático neopentecostal, que se vale das transmissões radiotelevisivas para ampliar sua base social. Edir Macedo e sua Record são apenas uma entre várias experiências bem-sucedidas nessa área, as quais fariam corar até Max Weber, o célebre autor de A ética protestante do capitalismo. De fato, as igrejas-empresas como a IURD já nem se preocupam em justificar o lucro, um conceito que ainda é capaz de gerar sentimento de culpa na antiga ética do catolicismo. Afinal de contas, vive-se a era pós-moderna em que o mercado é o deus supremo e a prosperidade individual é a única meta válida.
De resto, a tal balela do padrão de qualidade, que um ou outro costuma invocar para o produto que nos empulha, não resiste a um domingo na frente da telinha. O curioso é que, se na disputa entre a Globo e o SBT vivíamos sob a égide de Faustões, Gugus e Sílvios Santos, agora, nesta guerra santa (?), as duas redes, adotaram de vez o estilo BBB em sua programação. Ou seja: o coquetel de voyeurismo e completa banalização mercantil das relações humanas visto nos reality shows (A Fazenda, No Limite, etc.) torna-se cada vez mais a tônica em toda a grade, como atesta o pseudoprograma de variedades Fantástico ou o próprio jornalismo de Globo e Record, a cada dia mais autocentrado e antiético. Enfim, tudo “mui democrático” e à altura das instituições de Bruzundanga, como ilustra o Senado dos coronel Sarney e dos cangaceiros Calheiros, Távora, Jereissati & Cia.
* Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Extranjeros: reflexões, crônicas e ficções de um brasileiro em Cuba no “Período Especial”. Alimentador da AGECON no Rio de Janeiro