Os eventos da semana passada (não, não estou me referindo à copa do mundo) levantaram uma boa discussão sobre jornalismo, ética, limites, e outras tantas coisas que envolvem a divulgação de informações. Como hoje é domingo, permitam-me publicar algumas reflexões que me ocorreram sobre esse assunto.
Durante muitas décadas vivemos uma espécie de “ditadura” de um tipo de comunicação de massa unidirecional. Os jornais, as emissoras de rádio e depois as emissoras de televisão, eram fontes confiáveis de notícias. Tinham fé pública. Se o jornal informasse erroneamente que alguém tinha morrido, era bom que o sujeito tratasse de por fim à vida, porque ninguém mais ia acreditar que ele ainda estivesse vivo. Bom, isso é um pouco de exagero, mas acho que dá uma idéia de como as coisas foram um dia.
Com a ditadura propriamente dita (costumava chamar de ditadura militar, mas o Nei Duclós acha que devemos chamá-la de ditadura civil-militar e aí já fico em dúvida), as coisas começaram a mudar: os brasileiros descobriram um negócio chamado de “imprensa alternativa”. Nanicos, pequenos jornais, produzidos à margem dos grandes grupos, com custos menores e sem os compromissos dos jornalões. Tinham, é verdade, seus próprios e graves compromissos e comprometimentos, mas pelo menos eram diferentes.
Quando a internet começou a se popularizar, permitindo que qualquer um se expressasse gratuitamente (em todos os sentidos), as alternativas se multiplicaram. O que antes se dizia em mesa de bar, para platéias diminutas (no começo da noite, em comentários audíveis apenas pelos três ou quatro da própria mesa e à medida em que o álcool ia amplificando a voz, com discursos para todos que estavam no ambiente), podia agora ser dito para o mundo.
E aí começam os problemas. O mesmo sujeito que na mesa de bar destilava todos os seus rancores contra um desafeto, passou a fazer a mesma coisa em seu blog, que, teoricamente, pode ser lido por todo mundo no mundo todo. E se a gente começava a romper o fluxo unidirecional dos noticiários, ao mesmo tempo transferia, para blogs e outras ferramentas, a mesma idolatria e reverência com que sempre brindamos a “grande imprensa”. E passamos não só a levar a sério tudo o que aparecia na tela do computador, como também a achar que os autores daquilo tinham algum tipo de responsabilidade para com a exatidão do que publicavam.
No começo do uso massivo de e-mails, era comum ver gente que considerávamos séria e de bom senso, repassado ppts, correntes, cartas de apelo por desaparecidos, trotes de todo tipo. Porque achavam que, se alguém pediu para repassar, é porque a informação deveria ser importante.
Depois isso diminuiu um pouco e apenas alguns teimosos continuam com essa prática primitiva. Com os blogs e as informações do tuíter, do (argh!) orkut, facebook e outras ferramentas, acontece coisa parecida. Passa-se adiante a coisa sem avaliar muito bem. E tudo vira um mesmo chiclete informativo sabor “sensacional”, que passa de boca em boca, mais valorizado pelo efeito do pretenso fato, do que por sua existência real.
Qual é a diferença entre as comadres que, na antiga vila do Desterro, gastavam os cotovelos na janela da frente, atualizando-se e atualizando sobre a vida alheia e a maioria das “redes sociais”? Nenhuma. Talvez a faixa etária: as velhas fofoqueiras agora são acompahados por jovens fofoqueiros. Todos ávidos por uma laminha.
É da natureza humana encantar-se com a desgraça alheia. Sempre foi assim e pelo jeito vai demorar a mudar. A história sensacional tem ingredientes especiais que a tornam apetitosa. Um sobrenome famoso, por exemplo, transforma qualquer caso num assunto prioritário. A zelite (antigamente a família real, hoje os ricos e famosos) e seus colégios, seus carrões, seus bairros “nobres” (este adjetivo denuncia a origem de tudo), são sempre pratos principais para todos nós, do “povão”.
Portanto, um crime cometido por jovens delinquentes de famílias conhecidas (e poderosas), moradores de uma região “chique”, estudantes de colégios particulares, não poderia ser acobertado. É naturalmente sensacional. E tem todos os ingredientes para aguçar todos os apetites.
Seria inevitável que aparecesse na internet. Acho mesmo que demorou muito. Para muitas pessoas, como eu, que não têm mais filhos em colégio e que não frequentam muitas rodas de conversa, o fato era desconhecido. Mas no hospital infantil e nos colégios, por várias semanas, havia um zum-zum-zum. E embora seja compreensível que os envolvidos façam todo o esforço para ocultar o caso e evitar o escândalo, não tem como segurar. Segredo entre três, só matando dois, diz a sabedoria popular.
Faltava, pelo jeito, um gatilho, uma espoleta, que detonasse a divulgação. E isso foi, até onde sei, um texto que alguém produziu com as informações básicas e alguns adendos próprios para “esquentar” ainda mais a coisa que já era, por si só, quente. E atribuiram a autoria a um ente tão anônimo e impossível de aferir, quanto apelativo: “mães do Colégio Catarinense”. Pronto, o explosivo caseiro estava montado. Com algumas peças de verdade, outras “fake”, mas, no geral, pronto pra causar barulho, fumaça e espanto.
Com a fofoca no ar, via blogs (com todas as imprecisões e ousadias irresponsáveis das fofocas), este seria um segundo bom momento para que alguém começasse a exercer o jornalismo. O primeiro momento, que foi logo após o fato e antes que a fofoca se espalhasse, tinha sido perdido. Havia, entretanto, esse outro bom momento. Afinal, a curiosidade da cidade estava desperta e muita gente, que percebia as inconsistências daquela bomba caseira, mas suspeitava que por trás daquele espalhafato pudesse mesmo existir algum crime grave, gostaria de ter alguma informação jornalística.
E, aí é que está um dos problemas principais e o centro deste debate: por que a notícia não foi apurada adequadamente e, se foi, por que não foi publicada? Em que pese a tentativa de justificativa que o colega Carlos Damião enviou aqui para este blog e que publiquei abaixo, tenho a impressão que predominaram duas situações, que são relativamente comuns nos grandes veículos comerciais de comunicação:
a) Os veículos do grupo ao qual pertence (por vínculos profissionais e familiares) o pai de um dos suspeitos (RBS), devem ter ficado sem saber como conduzir o caso. Não era uma decisão fácil e nem poderia ser tomada por executivos de qualquer nível. Reuniões, consultas, avaliações devem ter ocupado um bom tempo das várias chefias. É possível que, no primeiro momento, a decisão tenha sido de ignorar o fato.
b) A outra rede que tem televisões e jornal, a RIC, da família Petrelli, é famosa por sua excessiva cautela informativa. Tanto ou mais que a RBS, evita noticiar fatos que possam “criar problemas”. Por isso, não é de espantar que tenha esperado até a undécima hora para entrar no assunto. E a justificativa de que só quando tiveram acesso ao BO é que reuniram elementos para publicar a matéria, é apenas uma justificativa.
Portanto, por mais torta que tenha sido a propagação inicial das informações do caso na internet (cometendo crime grave e demonstrando falta de compaixão, ao divulgar o nome da vítima e de outras meninas, potenciais vítimas da gangue), parece inegável que, sem a avalanche de tuíters e a corrente de e-mails, as duas redes comerciais de comunicação não se sentiriam pressionadas a falar sobre o caso. E, talvez, nem a autoridade policial se sentisse no dever de dar alguma satisfação.
O lado ruim foi que a forma atabalhoada e desfocada com que a fumaça se espalhou, desviou a atenção de alguns detalhes importantes. Por exemplo, “esqueceram” do terceiro envolvido, que simplesmente sumiu dos relatos. E não se fala no fato de que o procedimento desses jovens, que escandalizou tanta gente, parece ser comum a um grupo maior. Esse jeito doentio de levar a vida desde cedo, com sexo, drogas e rock’n roll no pior dos sentidos, não é algo que nasça espontaneamente: os monstrinhos são gestados e alimentados por um ambiente anti-social que é importante conhecer, estudar e saber se é possível reverter. Ao concentrar o preconceito contra um único colégio particular, a fofoca inicial abafa a situação dos colégios, públicos e privados, de uma maneira geral, que vivem situações complicadíssimas, com a omissão de muitos pais, que, incompetentes e impotentes para educar os filhos, entregam para as escolas uns trastes incorrigíveis que transformam o dia-a-dia de professores e colegas num inferno.
O lado bom foi a percepção clara, mesmo para aqueles mais recalcitrantes, que as redes alternativas de comunicação podem suprir as demandas da curiosidade popular. Isso ajuda a consolidar a impressão de que não se consegue mais manter em segredo, por muito tempo, fatos relevantes. Falta ainda amadurecer uma forma de apurar e distribuir, de forma profissional e confiável, informações que possam alimentar essa rede, mas acredito que isso, com o tempo, se corrigirá.
EM TEMPO
Antes que me crucifiquem junto com o Damião, devo dizer novamente o que já disse nos comentários daquela nota que gerou tanta discussão: acho, ao contrário dele, que é possível apurar informações (e mesmo publicá-las) antes da “divulgação oficial”. Não é preciso esperar por documentos oficiais. Mas é preciso cumprir algumas rotinas de confirmação, para que a apuração jornalística tenha confiabilidade e não passe a ser apenas a propagação das versões e fofocas. Como também acredito que notícia boa é aquela que alguém gostaria de manter oculta, é claro que ela não estará nos press releases, nem nas notas oficiais ou nas entrevistas coletivas. Garimpar, encontrar a notícia e cercar-se dos cuidados que a boa técnica de reportagem recomenda para separar fatos verdadeiros de versões fantasiosas, é coisa trabalhosa, que toma tempo. E nas redações dos veículos comerciais, tempo para apuração é coisa que não há. E, muitas vezes, também não contam com gente capaz de fazer uma reportagem sem o recheio habitual de declarações oficiais. Por isso, infelizmente, o leitor e o espectador nem sempre fica satisfeito com o que lê, ouve ou vê nos programas jornalísticos. E sai internet afora, em busca de paliativos para seu sofrimento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário