O futebol torna-se, cada vez mais, uma metáfora contundente da nossa sociedade e, não seria exagero dizer, de boa parte deste mundo pós-moderno neoliberalmente globalizado. Aqui mesmo, nesta coluna, já ilustramos com casos emblemáticos de Bruzundanga uma extensa e variada crônica das relações promíscuas de “empresários” e investidores com o velho e violento esporte bretão. Basta citar o escândalo que se abateu sobre o Corinthians ao final da gestão Dualib, que envolveu milhões de dólares circulando livremente entre o Brasil, a Rússia e a Inglaterra, alvo de mais uma investigação da Polícia Federal que, pelo visto, não resultará em nenhuma pena mais grave para seus protagonistas.
Friso a amplitude internacional dessas “relações perigosas” porque, ao contrário do que muitos apregoam, as maracutaias da pelota não são um privilégio das nações que vicejam na periferia do capital. Assim como em diversas outras atividades humanas, a fonte seminal das bandalheiras não brota em terras do Novo Mundo, mas sim nas velhas nações da Europa, como nos atesta o colossal esquema de arranjo de resultados que a máfia das apostas montou na Alemanha, Turquia e em vários países do Leste europeu.
O Campeonato Brasileiro recém-encerrado, mais conhecido como Brasileirão 2009, também nos propiciou lições valiosíssimas sobre a sociedade contemporânea, na qual, segundo o paradigma ditado pelo american way of life, o fundamental não é competir, mas sim vencer – exatamente o oposto do que pregara o idealista Barão de Coubertin, pai dos modernos Jogos Olímpicos. O individualismo exacerbado, quando se conjuga ao padrão de absoluta impunidade que as elites de Bruzundanga cultivam, resulta em um caldo de cultura extremamente nocivo, em que os germes da intolerância e do fascismo encontram ambiente mais do que propício para sua reprodução.
Refiro-me, está claro, aos episódios que marcaram a última rodada do torneio. Desde a compra antecipada de ingressos no Maracanã, em que multidões incitadas pelo condão midiático foram buscar sua senha para o paraíso e só encontraram os chicotes e as bombas de gás lacrimogêneo da PM, até o triste desfecho do jogo entre Coritiba e Fluminense no Paraná, em que, a exemplo da velha Roma, a catarse típica do panem et circenses só poderia consumar-se com o aniquilamento físico do inimigo, ou seja, do “outro” – o eterno bárbaro que se interpõe no caminho dos civilizados rumo ao poder e à glória.
A negação do outro mantém, de forma incoercível, uma estreita conexão com o recrudescimento da violência em nossa sociedade de consumo e iniqüidade hipertrofiados. O exemplo de Brasília, onde deputados, senadores, desembargadores e altos executivos da República se locupletam com panetones e mensalões, estimula em grau ilimitado as tramóias dos pícaros tupiniquins. Sob o clima de euforia com que muitos festejaram o final do campeonato, decerto inúmeras falcatruas dos cartolas da pelota serão varridas para debaixo do tapete.
Oxalá os tricolores, em êxtase pela saga milagrosa de Cuca, Conca e Fred, não se esqueçam da esquizofrenia que rachou o Fluminense em dois grupos de atletas: um era tratado a pão-de-ló pelo patrocinador; outro amargava meses de atraso salarial nas mãos da diretoria... Quem dera os rubro-negros se unissem para impedir que idiotas como Márcio Braga, Kléber Leite & Cia. continuem a servir-se do Flamengo para suas megalomanias políticas e comerciais, que levaram o clube de maior torcida do Brasil a possuir a segunda maior dívida do esporte tupiniquim.
Ainda assim, não desanimemos por completo. Há sinais de vida no planeta bola. A reação de vários torcedores e jornalistas às artimanhas dos dirigentes – e até dos atletas, como se viu após o lance ilegal de Thierry Henry na classificação da França para a Copa – já indicia uma mudança que somente os instantes de aguda crise logram fomentar. Algo me diz que o time cá de baixo anda querendo virar o jogo contra a turma dos donos da pelota. E posso garantir-lhes que, como Obama, Merkel, Blair e seus sócios não sabem nada de bola, ainda há chance de os atletas da Pátria Grande virarem esse adverso placar...
* Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil (lançado em 2009 pela Expressão Popular). E alimentador da AGECON no Rio de Janeiro.
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